Elabora pauta, apura, entrevista, decupa, grava, redige e revisa. A rotina de um jornalista exige dinamicidade e, por vezes, alguns acúmulos de funções no meio digital. Quando se trata de uma jornalista mulher, então, esse cenário profissional é acompanhado de uma jornada dupla ou mesmo tripla. A correria é três vezes maior na tentativa de conciliar o lado profissional, vida pessoal e trabalhos invisíveis de cuidado.
Com pesquisa divulgada em 2022, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), traçou o perfil do/a jornalista brasileiro/a 2021 , após coletar 6.594 respostas válidas de profissionais de todas as regiões do Brasil. Os dados indicam que jornalistas do país ainda são majoritariamente mulheres (58%), brancas (68,4%), solteiras (53%), com até 40 anos.
Ao interpretar esses dados, a pesquisadora e jornalista alagoana Carla Serqueira explica que a grande quantidade de mulheres na profissão não significa necessariamente que ocorra um processo de ocupação igualitária desses espaços do ponto de vista hierárquico.
Os dados de pesquisas recentes demonstram que o poder de decisão ainda é concentrado no grupo
de
jornalistas homens. Na tentativa de dar conta deste contexto, as teorias do Teto de Vidro e
da
Síndrome da Abelha Rainha ajudam a desvendar obstáculos no processo de feminização, como
critérios
desiguais para ascensão profissional (Teto de Vidro) e a reprodução da cultura
organizacional
masculina pelas mulheres que alcançam cargos de chefia (Síndrome da Abelha Rainha)
,
revela.
Sobre as mudanças em comparação com a primeira versão do levantamento de 2012, a pesquisadora destaca a diminuição do número de mulheres (de 64% para 58%) e aumento da presença masculina (36% para 42%) na profissão.
Foi constatado um declínio no processo de feminilização do jornalismo no Brasil, indicador
que
vai
de encontro à tendência de maioria feminina indicada em estudos recentes. A precarização
intensificada pela crise do capital que chegou em sua forma mais crítica em 2008, além da
reestruturação da profissão em decorrência do cenário político e econômico global são alguns
motivos
indicados. Em períodos de crise, as mulheres são dispensadas em maior número do que os
homens,
ficam
mais vulneráveis
, ressalta.
De acordo com a pesquisa, a presença de pessoas negras na profissão também cresceu de 23% em 2012 para 30% em 2021. Carla pontua que é importante acompanhar os indicadores para prever os futuros quadros de jornalistas atuando na comunicação brasileira.
É fundamental verificar a diversidade no jornalismo não apenas considerando o acesso, mas
principalmente as condições de permanência e de ascensão profissional. Ainda falta muito a
se
conquistar: se hoje a maioria dos/as jornalistas é formada por mulheres, em um percentual
altíssimo
estas mulheres são brancas. Então ainda falta uma representatividade realmente significativa
de
mulheres negras no jornalismo e também de mulheres indígenas, mulheres trans e mulheres com
deficiência, entre outros grupos sub-representados na profissão
, reforça.
Afastando-se das grandes mídias hegemônicas, o âmbito do jornalismo alternativo, a partir do acesso às tecnologias e ao meio digital, apresenta-se como uma possibilidade para que mulheres assumam o comando efetivo de novas iniciativas jornalísticas mais plurais e diversas. Nesta reportagem multimídia, trazemos o relato de vivências, representatividade e desafios de mulheres atuantes nesse cenário em Alagoas.
Natural de Maceió/AL, Géssika Costa, 31 anos, encontrou seu lugar no radiojornalismo e usou toda sua habilidade a seu favor - talento e suor que lhe renderam 28 prêmios desde que se formou até hoje. O interesse em competir vem desde a adolescência quando praticava esportes como handebol, futsal e futebol.
Quando concluiu a graduação, ela foi contratada pela Agência Radioweb, lugar onde estagiou como repórter de rádio. Ao fazer matérias especiais, Géssika teve a ideia de produzir matérias também para os prêmios de jornalismo, visto que a própria empresa tinha uma política de incentivo para repórteres premiados.
Além do dinheiro extra no salário, participar dos concursos e premiações lhe trariam reconhecimento profissional e a possibilidade de viajar e conhecer o país, como conta:
A jornalista passou grande parte da sua vida morando no bairro da Ponta Grossa com sua família. Em sua infância, foi muito mimada pelos avós maternos, que lhe davam bonecas e guloseimas em forma de carinho. O desejo pelo jornalismo também veio desde pequena, Géssika sempre foi uma criança comunicativa e desenvolta, uma boa aluna mas que conversava demais segundo os professores. Foi em uma gincana do colégio sobre atualidades, respondendo perguntas sobre as eleições dos Estados Unidos, que ela decidiu de uma vez por todas pela profissão.
Quando finalizou o Ensino Médio, Géssika se dividiu entre dois cursos: Relações Públicas (RP), pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e Jornalismo numa faculdade particular. Ralando muito para conseguir se manter na faculdade particular, que segundo ela era cara na época, os desafios não se resumiam apenas à dificuldade financeira.
A primeira dificuldade é quando
você entra na faculdade e não enxerga na
sua turma muitas pessoas
pretas, acho que só tinha eu e mais duas. As pessoas não eram iguais a mim e alguns
professores
a
tratavam diferente. Depois percebi que os meus colegas conseguiram estágio mais rápido que
eu,
apesar de não terem a mesma experiência que eu tinha, mas por indicação de alguns
professores
Géssika Costa
Quando veio a oportunidade do primeiro estágio remunerado em jornalismo, ela
se
desdobrava para dar conta de tudo nas 24h que tinha. “De manhã, eu estagiava, de tarde eu ia
para a
UFAL, de noite eu ia para o Cesmac. Sempre gostei de fazer muita coisa ao mesmo tempo. Talvez eu
seja até um pouco hiperativa”, destacou.
Depois Géssika decidiu abdicar da faculdade de RP para se dedicar à sua formação em jornalismo. Ela passou pelo impresso, radiojornalismo, webjornalismo, além de fazer assessoria. Apesar dos bons aprendizados em seus estágios, a jornalista não deixou de sofrer algumas violências enquanto mulher, como assédio moral e sexual.
“O estágio é sempre você estar num lugar mais frágil numa redação. Então isso acontecia, não em todas as redações, mas em algumas. Eram situações de jogar o lado pejorativo para a mulher negra, de soltar piadinhas e a gente na hora gela por ser muito nova na profissão e na vida. Eu tinha 20 anos. A gente fica sem reação e, às vezes, acaba rindo, mas rindo de medo, e eu não conseguia me posicionar”, ressaltou a jornalista.
Em 2019, após a Greve dos Jornalistas de Alagoas, veio seu primeiro contato com o jornalismo alternativo por meio da Agência Tatu, onde assumiu a função de diretora de plataformas, de forma voluntária. A partir daí, ela participou de outros projetos de jornalismo independente e fez ponte com profissionais de todo o país.
Géssika mostrando seu álbum de formatura junto a sua família. Foto: Kamilla Abely
“Sempre me virei em muitas Géssikas. A Géssika é de mil facetas. Já fiz TV, rádio, impresso, fiz
de
tudo”, destacou a alagoana. O desejo de montar seu próprio veículo também era algo antigo e logo
o
Olhos Jornalismo saiu do papel, enquanto coletivo de mídia independente no estado.
Atualmente, a jornalista concilia seu trabalho no Olhos Jornalismo, com sua função de coordenadora de projetos na Associação de Jornalismo Digital (Ajor), que é uma organização que reúne 137 iniciativas de jornalismo digital independentes do Brasil. Géssika reforça alguns desafios que enfrenta enquanto veículo independente como assédios judiciais, dificuldade de ganhar espaço no mercado e a falta de apoio financeiro e estabilidade.
Em 2024, o Olhos Jornalismo completa 4 anos e ainda não é sustentável. A gente já ganhou
diversos
projetos ao longo dos anos, mas eles não foram suficientes para que a gente dissesse que
estamos
sobrevivendo do Olhos e que o Olhos virou uma empresa de sucesso financeiro e econômico.
Outro
tipo
de sucesso a gente consegue medir, mas o econômico é algo que a gente não consegue ter
ainda
,
afirma a idealizadora.
Apesar de ser uma guerra difícil de vencer, Géssika conta que os veículos alternativos estão ali para resistir e mostrar seus impactos. Um deles é a representatividade e pluralidade dentro das redações frente aos veículos tradicionais.
Para se sentir representada, Géssika quando chegava nas redações sempre buscava por uma mulher preta de referência e foi acolhida por muitas jornalistas alagoanas em redações cercadas de homens brancos. Inspirada pela avó Geci Alice, pela mãe Geane Lima e tia Zenilde Alice, além das amigas de profissão que fazem parte da sua trajetória, Géssika hoje conta a história de mulheres inspiradoras e também inspira outras gerações.
Eu confesso que quando recebo um elogio fico feliz, mas fico meio com vergonha. Eu acho que
às
vezes a gente não consegue aceitar o elogio e isso é muito desse mundo machista, hétero,
preconceituoso, em que mulheres negras não conseguem entender que são motivos de inspiração
para
outras pessoas
, destaca.
Em meio à crise no jornalismo alagoano no ano de 2019, a greve dos profissionais e a retaliação dos grandes conglomerados de comunicação em forma de demissões em massa, Wanessa Oliveira, 35 anos, viu no jornalismo alternativo uma nova chance de continuar fazendo o que sempre gostou.
Foi meu último suspiro, uma
chance de voltar para a superfície, respirar, pensar e raciocinar direito em como fazer
jornalismo. Tudo pensando em construir alguma coisa, não sozinha, com uma lógica
diferente
de
trabalho e de condições de trabalho que sejam mais horizontais, que não tenham tantas
amarras
editoriais e nem políticas
, destaca.
Nascida em Maceió/AL, Wanessa passou a maior parte de sua vida no bairro do Poço, na casa de sua avó materna, em um lar cheio de protagonismo e decisão de mulheres. Por sua adoração pela leitura, surgiu o apelido de “rata de biblioteca”. Amava estar com os amigos da escola e de sua rua, mas também adorava ficar sozinha com um livro na mão. Em contato com livros-reportagem, o jornalismo se tornou uma opção de profissão.
Depois de trabalhar com webjornalismo e assessorias, Wanessa decidiu dar uma pausa para se dedicar ao mestrado em Sociologia, um desejo que sempre teve de fazer pesquisas e se aprofundar em alguns assuntos. Entre as dificuldades que sofreu durante sua atuação no jornalismo, ela destaca que seu tom de voz formava uma imagem subestimada para os entrevistados, que se sentiam confortáveis para confessar algumas situações questionáveis. Apesar de ter aprendido a usar isso a seu favor, a jornalista não gostava do comportamento.
Tenho um tom de voz que é
mais calmo e mais infantilizado na verdade e muitos entrevistados me subestimavam de uma
maneira
arrasadora, até hoje. Eles se sentiam muito à vontade para declarar situações e falas muito
atrozes, muito levianas, às vezes. Isso era um ganho, mas me incomodava porque a pessoa
sempre
está sendo subestimada, sempre tendo que mostrar por outras características que não merece
ser
pisada
, ressalta.
Após seu contato com a Sociologia, Wanessa passou a reconhecer algumas violências que sofreu e sofria enquanto mulher. Há 11 anos, em sua primeira gravidez, ela viu seu ritmo desacelerar para conciliar as várias jornadas junto à maternidade.
Na sociologia foi onde
encontrei mesmo algumas respostas para o que eu vivia antes, conseguindo reconhecer quando
eu
sofria episódios de assédio com autoridades, quando sofria assédio no sentido de trabalho,
quando os superiores queriam que eu trabalhasse de madrugada, por exemplo, quando eu já
estava
trabalhando domingo a domingo, e quando eu dizia não tinha condições, eles diziam: eu
entendo, é
porque você tem filho, e eu dizia: não, é porque eu tenho vida
, conta.
O feminismo me faz trabalhar com esse sangue no olho, sendo
também uma lente com que eu faço minhas escolhas pessoais e profissionais, além de me fazer
enxergar o mundo e as limitações que a gente tem enquanto mulher, a partir das nossas
individualidades que se atravessam e que são interseccionais. Para algumas mulheres é muito
mais
difícil do que para outras
Wanessa Oliveira
a
Depois de passar três anos ensinando em faculdade particular, ela retornou para a sua área de formação fazendo reportagens, entrevistas, coordenando redes sociais de um veículo de imprensa e até fazendo participações em rádio.
Eu sempre atuei na imprensa
dentro de uma grande corporação daqui, mas a crise no jornalismo alagoano, que é brasileiro
na
verdade, foi apertando muito as condições de trabalhos da gente, era uma sobrecarga imensa
que
impactava diretamente na qualidade mesmo do trabalho da gente. Nesse contexto, os donos das
empresas resolveram se juntar e querer reduzir o piso do jornalista em 40% e aí houve uma
greve
que foi a gota d´água porque mostrou como estava sendo brutal a relação
, ressaltou a
jornalista.
Após sua demissão, Wanessa se juntou a outros amigos jornalistas para
construir a Mídia Caeté - uma cooperativa de jornalismo local e independente.
Apesar de todos os avanços, para a jornalista, a sustentabilidade é uma das maiores dificuldades no jornalismo independente.
A gente abre mão da publicidade e
é muito desafiador viver de editais, já que não tem fomento ao jornalismo independente como
tem
em
outros setores. E isso também impõe mais uma dificuldade que é a gente conseguir se equipar
tecnicamente e tecnologicamente para manter essa autogestão ativa
, destacou.
Para Wanessa, existe uma maior representatividade no contexto do jornalismo alternativo, mas a falta de recursos, apoio e incentivo não garante a permanência dos projetos e de que as iniciativas mais plurais se estruturem e se mantenham a longo prazo. Ela pontua também que, apesar do processo de representatividade ser importante, a sociedade não pode se iludir sem levar em conta o contexto desigual brasileiro.
A gente tem um problema
estrutural gigantesco no Brasil em termos de opressões, de classe, de gênero, de raça e
etnia.
Se
esse problema em si não for enfrentado de uma maneira mais direta e mais coletiva, a gente
corre
o
risco de ter referências de mulheres aqui e ali, enquanto a grande maioria acaba seguindo
nas
margens de falta total de condições de trabalho, de vida, de possibilidade de continuar com
o
jornalismo também, enquanto se louva algumas que estão no topo
, reforça Oliveira.
Se perguntassem no ano de 2009 para Priscila Anacleto, 32 anos, qual
curso
escolheu e quais eram as expectativas, ela falaria que optou por jornalismo no PSS da
Universidade
Federal de Alagoas, mas que tinha certeza de que não passaria. Mal sabia ela que receberia a
notícia
da aprovação por terceiros e que, anos depois, seria a primeira pessoa da família a concluir
o
ensino superior e fazer sua história no jornalismo alagoano.
Quando perguntavam: o que você
quer ser quando crescer? Eu pequenininha, não sabia nem ler, respondia: jornalista! Não
sei
de
onde
veio a influência. Sempre soube da dificuldade que seria entrar na universidade, eu nem
sequer
sabia
o dia do resultado porque eu tinha certeza que eu não ia passar. Sou filha de uma
cozinheira
e
meu
pai na época era caseiro e pipoqueiro. Eu estudava numa escola estadual que ficava no
interior,
não
tinha valorização. Fui avisada por outras pessoas que havia passado na UFAL
, contou.
Nascida em Maceió/AL, Priscila morou em Paripueira durante sua infância e desenvolveu uma relação forte com o mar. Sempre se dedicou em sala de aula, tirando boas notas e manteve isso ao longo de sua graduação. Dividia-se entre a faculdade e empregos temporários, como balconista e cuidadora de crianças - até aparecer sua primeira oportunidade de estágio na TV Gazeta.
Atualmente, Priscila cuida dos bastidores e gestão da TV Liberdade. Foto: Kamilla AbelyAo cobrir as férias de jornalistas em Arapiraca e se destacar, logo veio a contratação e proposta de morar na cidade do Agreste produzindo para a sucursal da filial da Globo. Durante sua atuação profissional, Anacleto descobriu sua paixão pela área esportiva, mas infelizmente como tantas outras jornalistas mulheres, enfrentou situações de assédio e preconceito de gênero como conta abaixo:
Infelizmente, Priscila também passou a lidar não só com o preconceito de gênero, mas com o racismo dentro da empresa. Enquanto produtora de pautas, pouco tempo depois ela também passou a cumprir a função de repórter. Priscila estava há um mês no processo de transição capilar e decidiu que não abandonaria sua decisão.
A transição não é um processo
fácil e a umidade também dificulta bastante. Eu tinha que entrar ao vivo às seis horas de
amanhã,
tinha que estar na praça às cinco da manhã. Por mais que eu fizesse texturização e todas as
dicas
que encontrava na internet, a umidade fazia com que o meu cabelo ficasse sem forma, ficasse
estranho. O conselho que eu mais recebi na época foi fazer permanente afro ou voltar a
alisar,
mas
eu não queria voltar a fazer química. Estava decidida e foi aí que eu resolvi cortar o meu
cabelo
com cinco meses de transição, ele ficou muito curto, as pessoas criticaram bastante, me
chamaram
de
louca, perguntaram quem me obrigou. Não era fácil, mas eu tinha tomado uma decisão e levei
até o
fim
, resaltou.
Os episódios de racismo faziam parte do dia a dia de Priscila, apesar da pauta de representatividade negra ser levantada pela empresa quando lhe era conveniente.
Durante a época de sua transição, a jornalista conta que também chegou a receber críticas de pessoas dizendo que ela estava imitando a Maju Coutinho, que estava aparecendo em rede nacional com seu cabelo natural. Apesar dos comentários maldosos, pouco tempo depois, Priscila teve o retorno de meninas que estavam sendo inspiradas por ela a abandonarem a química e assumirem as formas naturais dos seus cabelos - do cacheado ao crespo.
Eu recebi relatos de meninas, de
pais, de professoras que falaram sobre meninas que resolveram fazer porque me viram fazendo
a
transição capilar ao vivo, tipo: se a Priscila está fazendo a Transição Capilar na TV ao
vivo,
eu
consigo fazer em casa e ir para a escola! Na época em que eu comecei a aparecer nós até
tínhamos
jornalistas negros, mas não jornalistas negras cacheadas, crespas e muito menos passando
pela
transição na TV. Digo com muito orgulho que eu fui uma representatividade importante para
essas
meninas em Alagoas
Priscila Anacleto
A representatividade que as crianças e estudantes de jornalismo presenciam hoje não era o mesmo cenário na época em que Priscila tentava se imaginar na profissão:
Durante a rotina na TV, ela se aproximou do jornalista Tony Medeiros, que tempos depois se tornaria seu esposo, com quem compartilhou o sonho mútuo de construir um veículo alternativo - mas que não era possível por causa das regras da emissora. Em 2019, Priscila e seus amigos de profissão foram surpreendidos com a crise no mercado que fez surgir a greve dos profissionais - movimento em que participou efetivamente e ficou nove dias sem atuar, lutando por seus direitos trabalhistas.
Quando foi demitida - até hoje sem ter recebido seu FGTS, Priscila resolveu se dedicar a seu
sonho
antigo de criar seu próprio veículo e assim nasceu a TV Liberdade, uma WebTV focada em cobrir
assuntos relacionados à cidade de Arapiraca, capital do Agreste alagoano.
Priscila não esconde sua felicidade ao falar sobre os 4 anos da TV Liberdade
e seus resultados, seja em impressões no Youtube, seja com feedbacks diretos de internautas.
Apesar dos impactos positivos, a idealizadora destaca a dificuldade em se manter como veículo
independente e ter que conciliar com trabalhos em outras áreas por questões financeiras.
“Enquanto veículo independente nós precisamos sempre mostrar o que podemos fazer, mostrar nosso
valor, precisamos ganhar o nosso espaço e as pessoas não entendem que precisamos nos manter”,
reforçou.
A alagoana Raíssa França, 31 anos, nasceu em Maceió e sempre teve o gosto pela escrita desde a infância. Ler e contar histórias era sua paixão, e na sétima série ela chegou a escrever um livro como atividade do colégio. Uma criança comunicativa que todos a seu redor já previam que escolheria algo relacionado à área de comunicação.
Quando a internet chegou e se popularizou, Raíssa trocou os caderninhos e diários por blogs para deixar registrados seus contos e crônicas - sobre romance ou vida cotidiana. Com sua personalidade forte, ela também tinha um senso de justiça que a acompanhava desde cedo. O jornalismo, apesar de sempre ter sido sua primeira opção, foi a segunda faculdade a cursar depois de uma crise pessoal, como conta.
Em sua trajetória profissional, a jornalista passou por várias áreas e lugares entre assessorias e redações. Quando teve contato com o webjornalismo, Raíssa descobriu sua paixão por redação e, logo após concluir a graduação em 2018, foi contratada como repórter. A partir daí, foi conciliando vários empregos também em assessoria e produção de conteúdo para redes sociais.
Ao trabalhar em uma redação majoritariamente feminina, Raíssa se sentia acolhida ao conviver cercada de mulheres. Nos trabalhos externos e coletivas, entretanto, ela enfrentou situações de assédio que, ao longo do tempo, aprendeu a lidar e tomar uma posição que não possuía antes. Em um dos casos, a jornalista foi descredibilizada e ameaçada por um político.
Eu notava que os homens se comportavam de uma maneira diferente e já levei
também alguns gritos de homens sobre algumas matérias que não gostaram. Acho que na cabeça
deles
era
bem mais fácil gritar com a mulher. Recebi até uma ameaça velada de um deputado que disse:
vou
pedir
que o seu chefe reveja essa equipe porque não me parece adequada. Parece que você não tem
formação
suficiente. Isso porque eu fiz uma pergunta que ele não gostou
, revelou.
Eu me senti muito tentada a fazer algo pelo mundo, a fazer
algo
de diferente.
Raíssa
França
Em 2019, trocando ideias com amigas, Raíssa descobriu o desejo de empreender
e
deixar sua marca no jornalismo alagoano. Junto a uma colega de profissão, ela começou a pensar e
planejar seu projeto que sairia do papel em 2020 com o nome de Eufêmea, portal de conteúdo
focado no
público feminino do Nordeste.
Eu sabia que queria fazer algo relacionado à redação, que era algo que eu
gostava, e a mulheres. Porque nesse período eu tive um blog no Cada Minuto e, quando
escrevia
muitos assuntos que a mídia tradicional não abordava, eu percebia que muitas mulheres me
procuravam para dizer que se sentiram representadas com as matérias. Então eu sabia que
existia
uma lacuna, foi quando eu decidi realmente que seria um portal de conteúdo feminino
explicou. Conheça um pouco mais sobre o portal Eufêmea abaixo:
O site foi ao ar no ano de 2020, no cenário pandêmico, e na época Raíssa
não o
imaginava como um veículo alternativo. “Não me passava pela cabeça que era uma mídia
independente,
eu não entendia bem esse universo e não existiam muitos sites de mídia independente aqui.
Era
algo
que não era muito a minha realidade, eu fui aprendendo depois com o tempo
, afirmou.
A jornalista conta alguns desafios e conquistas que surgiram após criar seu veículo:
Raíssa abdicou de seu emprego como repórter em um site de notícias tradicional e atualmente está se dedicando exclusivamente ao Eufêmea. Ela conta que antes de ter seu próprio veículo e lutar diariamente contra o machismo, havia sido chamada para um projeto de faculdade de uma amiga, que a perguntou se ela era feminista. Raíssa negou por não entender o movimento e ainda não se enxergar como uma.
Eu não me sentia uma mulher feminista, eu não achava que eu era feminista.
Eu
até falei isso, disse que eu não me considerava uma mulher feminista porque realmente eu não
entendia o que era o feminismo, então eu também não ia ser hipócrita, não ia dizer uma coisa
que
eu não entendia bem. Mas quando me recordo de quando eu era criança, sempre fui de combater,
sempre fui de falar: não, mulher tem espaço, não é assim, direitos iguais! Eu sempre fui
essa
criança e ninguém nunca me ensinou. Então eu sempre fui feminista, sabe, eu só não sabia, só
não
entendia
, comenta.
O ano de 2023 foi decisivo para a jornalista Lícia Souto, 25 anos, que se jogou de corpo e alma na Revista Alagoana, veículo independente que idealizou durante a faculdade. Isso porque ela passou a enxergar a vida sob um novo ângulo e significado depois de um ano da descoberta de um câncer de ovário, início do tratamento e uma difícil recuperação.
Viver a realidade de um paciente oncológico foi realmente uma coisa transformadora na
minha
vida.
Foi um choque, mas eu atravessei muito bem, com muito bom humor. Hoje já tenho um monte
de
cabelo na
cabeça e me sinto realmente renovada e com a visão da vida totalmente diferente da
menina
que
entrou
naquela sala de quimioterapia no dia 19 de setembro, no dia do meu aniversário
,
reforçou
Lícia
Doar-se para esse projeto foi uma forma de encontrar força e se reencontrar no processo de cura. Mas a garra sempre esteve com a menina que nasceu em Garanhuns, interior de Pernambuco, e aos 10 anos lidou com a perda da mãe, acontecimento que a marcou para o resto da vida. Com todo suporte, apoio e afeto da família, ela atravessou a perda materna e aprendeu a valorizar os relacionamentos que construía desde a escola.
Em 2017, ao concluir o Ensino Médio, decidiu se mudar para a casa da sua tia em Maceió e poder cursar a profissão que tinha escolhido.
Durante a graduação, Lícia experimentou e se desafiou em várias áreas, uma delas foi o jornalismo esportivo. Tentando se familiarizar, ela se preparou para realizar sua primeira cobertura, ainda como estudante. Em campo, Lícia ouviu piadas vindas dos jogadores, situação que o professor da disciplina alertou que poderia acontecer no ambiente masculinizado de futebol.
Em alguns momentos eu me sentia essa pessoa que não era
ouvida, não era levada a sério, por ser mulher e também por ser muito nova.
Lícia
Souto
A experiência no campo a fez se afastar do esporte. Pouco tempo depois, ela começou a trabalhar com assessoria, fazendo viagens para a empresa na qual trabalhava. Em algumas reuniões, Lícia sentia dificuldade para ser ouvida e sua opinião ser levada em conta frente a outros colaboradores homens - situação que se repetia em outras ocasiões.
Foto: Kamilla AbelyPor mais que seja recém-formado, novo ou estagiário, a opinião de um
homem acaba sempre tendo um pouco mais de credibilidade. Já uma mulher, principalmente
jovem, quando coloca o ponto de vista ali na mesa, às vezes não tem o mesmo peso porque
parece que ela não sabe o que está fazendo. Então eu fui tentando moldar a minha imagem
para
que a minha palavra tivesse mais valor e mais peso
, revelou a jornalista.
Lícia então foi abandonando o antigo visual - que antes muitos só
enxergavam uma menina jovem - e construindo a imagem de mulher séria e imponente. Pouco
tempo depois ela também descobriria talento para trabalhar com branding, desenvolvimento e
fortalecimento de marcas.
Ao passar por todas os espectros da comunicação, foi no jornalismo cultural que Souto, junto a outros amigos de graduação, decidiram criar a Revista Alagoana. Como boa pernambucana e bairrista que é, a jornalista viu a oportunidade de criar um veículo que fortalecesse a arte e cultura de Alagoas, com todo protagonismo. Hoje, Lícia é uma das sócias e idealizadoras da revista e conta um pouco sobre como o projeto nasceu:
A conclusão da graduação, por sua vez, foi um acontecimento significativo na história de Lícia, que se tornou a primeira mulher de sua família a se formar. “Minha mãe não se formou, a minha avó não se formou. As mulheres que vieram antes de mim na família passaram por contextos muito complexos, por muitos altos e baixos, e que passaram por um momento de pobreza. Eu sou parte da geração que atravessou e mudou essa história”, comenta orgulhosa.
Fotos: Acervo pessoalLícia não impactou apenas a memória de sua geração, mas impacta também a história do jornalismo alternativo alagoano por fazer parte desse ecossistema que busca por mais diversidade, pluralidade e criticidade. Olhando para trás, desde que se formou na faculdade até aqui, ela percebe um crescimento do cenário alternativo jornalístico no estado.
Hoje eu vejo não somente novos veículos surgindo como também uma rede
se
fortalecendo, enxergo a Ajor como um condutor muito forte e outros veículos maiores do
que
nós, por exemplo, trazendo iniciativas que fortalecem essas outras iniciativas menores e
distribuídas pelo Brasil todo, mas principalmente no Nordeste em que a gente tem essa
deficiência. Então eu vejo que em Alagoas, principalmente, o jornalismo independente
ganhou
muito mais força
, ressalta Souto.
Em relação à pluralidade, Lícia destaca que uma das principais deficiências do jornalismo brasileiro é a representatividade de mulheres negras, sobretudo em Alagoas. Ela traz como exemplo a própria revista que ainda não possui uma jornalista negra no quadro fixo, diferente do quadro de colunistas e colaboradores no qual existe uma maior diversidade de etnia, profissão, gênero e sexualidade.
Nós temos um homem negro e três mulheres brancas e isso é
desproporcional, eu consigo ter essa compreensão. Mas, infelizmente, nós não temos ainda
condições de trazer um jornalista fixo para o nosso quadro, de uma maneira remunerada
fixa. A gente ainda não conseguiu atingir essa igualdade e eu sinto que esse é um passo
muito importante que a gente precisa dar ao trazer uma mulher negra para cobrir essas
pautas com mais propriedade, com mais lugar de fala realmente e representatividade
,
complementa a jornalista.
Polyana Lima, 27 anos, não esconde o orgulho da sua trajetória no
jornalismo
desde o momento em que optou lutar ao lado dos profissionais, ainda como estagiária, na
greve de
2019. Foi justamente no Portal Acta que eu me redescobri como jornalista
, diz ela,
que
sabe o
quanto essa escolha a fez crescer em sua carreira.
Entre piquetes e mobilizações virtuais, os profissionais das grandes empresas de jornalismo de Alagoas realizaram uma greve, como última alternativa à redução de 40% do piso salarial da categoria. A decisão não afetaria diretamente Polyana por ser estagiária, e ela poderia ter continuado a trabalhar normalmente na produção de uma das TV’s do estado, mas decidiu integrar o movimento e estava disposta a sofrer as retaliações que as empresas fariam a todos os envolvidos depois.
Eu acredito muito que as nossas escolhas e decisões traçam os nossos
destinos.
Eu decidi abraçar a causa e entrar em greve junto aos profissionais das TVs, dos
jornais,
das
redações. E a minha entrada nessa greve acarretou a não-renovação do meu contrato de
estagiária.
A
partir disso, surgiu uma reunião de um grupo de jornalistas alagoanos que formaram o
Acta,
que é
onde estou hoje como sócia, junto a outros nove colega
, ressaltou Lima.
Nascida em Maceió, Polyana teve uma infância tranquila com brincadeiras na
rua,
andar de bicicleta, jogar chimbra, esconde-esconde, pega-pega, uma criança bem “raiz”, como ela
destaca. Sempre fui tida como uma criança boazinha, comportada, quietinha. Então nunca fui de
dar
muito trabalho assim para os meus pais
, revela a jornalista.
O único trabalho que dava, entretanto, era quando se recusava a dormir cedo
para
ficar lendo seus quadrinhos e livros. Eu adorava ler, inclusive um dos motivos de meus pais
brigarem comigo naquela época é porque eu ficava acordada até tarde, escondida debaixo das
cobertas,
lendo gibi da Turma da Mônica, era o meu vício na época
, conta Poly.
O hábito da leitura a acompanhou até a adolescência e vida adulta, o que influenciou sua escolha pela profissão, além do incentivo da própria família.
Uma das dificuldades enfrentadas enquanto estudante foi a inserção no mercado de trabalho. Polyana começou a ficar preocupada quando, na metade do curso, ainda não havia conseguido uma oportunidade de estágio, pensando até em desistir do curso e migrar para a área da saúde. Antes de tomar a decisão, a primeira chance de estagiar apareceu e uma oportunidade foi puxando a outra: redação, produção de TV e outros.
Fotos: Acervo pessoalEnquanto estagiária, ela também passou por situações de assédio com um dos
seus
antigos chefes. Era um assédio disfarçado, velado e coberto por riso, e eu ficava na dúvida
se
era
realmente isso ou se era coisa da minha cabeça, mas conversando com outras pessoas, percebi
que
não
era só comigo. Por isso a importância de falarmos sobre, para que a gente consiga enxergar
quando o
assédio surge e para que a gente possa combater, tendo uma rede de apoio para nos
encorajar
,
destaca.
Quando entrei no jornalismo, com a cabeça bem fechada, meu
foco
era apenas escrever. Se você falasse para mim que eu iria aparecer na tela, na TV, eu diria
que
era um surto, porque eu nunca me vi aparecendo assim
Polyana Lima
Outra dificuldade que Polyana enfrentou foi descobrir em qual área trabalharia dentro do jornalismo e comunicação. Sua paixão sempre foi a escrita, mas sabia da importância de caminhar por todas as áreas para poder experimentar e entender qual mais gostava. Pela timidez, ela não se imaginava aparecendo na televisão, mas ao longo da sua formação, Polyana foi descobrindo novos talentos.
Quando entrou para o Portal Acta, veículo de notícias que ajudou a construir
após
a greve dos jornalistas de Alagoas, ela conseguiu entender, na prática, que aparecer em vídeo
também
seria possível e que seu visual com cabelo colorido e tatuagens não era nenhum impedimento.
Eu fui vendo a recepção das pessoas em relação a mim no vídeo, uma
recepção
legal e calorosa, e mudei essa forma de me enxergar. A gente tem muito estereótipo em
relação à
mulher jornalista que aparece em vídeo, que ela tem que ter um visual calmo, mais ameno, que
ela
não
pode ter nada chamativo, mas ela pode sim. Não importa o que ela tem no corpo ou como é o
cabelo
dela e sim a informação que ela tem para passar para o público
, reforça.
Entre as coisas que Polyana aprendeu na faculdade está a importância de passar, para o público, a informação com a maior clareza possível. Entretanto, antes mesmo de cursar jornalismo, ela já ensaiava essa transmissão ao explicar as notícias do dia a dia para sua avó que era analfabeta.
Minha avó sempre me inspirou muito, ela já faleceu e nunca aprendeu a ler
durante sua vida, então eu via muita dificuldade por parte dela para assimilar os conteúdos
e a
gente sempre ajudava. Ao entrar no jornalismo, teve uma aula que me pegou muito de surpresa
quando o
professor falou: quando você for escrever, faça como se estivesse escrevendo para sua avó. A
partir
daí coloquei na cabeça que preciso fazer meu trabalho da forma mais clara, fácil e coesa
possível
para pessoas como a minha avó possam entender
, revelou a jornalista.
Visitamos o Bloco de Comunicação Social (COS) da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) para perguntar às estudantes de jornalismo quais são as mulheres que são
referência na área, confira o resultado:
@protagonismofemininoal Demos um pulo no COS para conversar com as estudantes de jornalismo e descobrir quais as mulheres jornalistas que inspiram e são referência para elas 🫶🏻 #jornalismo #mulheresjornalistas #inspiracao #ufal ♬ som original - Protagonismo Feminino AL